Fiscobras 25 anos: casos relevantes, desafios, pioneirismo e evolução do controle externo
Na terceira matéria da série Fiscobras 25 anos, vamos falar sobre outros casos emblemáticos ocorridos nas duas décadas e meia do Plano Anual de Fiscalização de Obras Públicas do Tribunal de Contas da União (TCU), o Fiscobras. Após a auditoria das obras do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo), que destacou o relatório em todo o país – e que foi foco da primeira e da segunda matéria desta série –, outras fiscalizações ganharam repercussão no Brasil, reforçando a importância do controle externo da administração pública.
O coordenador-geral de Controle Externo de Infraestrutura (Coinfra), Manoel Moreira de Souza Neto, cita alguns desses casos: BR 101-Nordeste, Ferrovia Norte-Sul, Projeto de Integração do Rio São Francisco (Pisf), Canal do Sertão Alagoano, Refinaria Abreu e Lima, também conhecida como Refinaria do Nordeste (Rnest), obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), Aeroporto de Vitória e Angra 3 (veja alguns números ao final desta matéria). De todas estas, nesta série, abordaremos mais detalhadamente o desenvolvimento das auditorias da Rnest e do Pisf.
Para falar sobre as duas investigações, conversamos com alguns dos auditores responsáveis por parte do trabalho desenvolvido desde o início e mesmo no decorrer dos processos. Na matéria de hoje, abordaremos o caso da Refinaria Abreu e Lima (Rnest) com o diretor da Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de Energia Elétrica (SeinfraElétrica) André Delgado de Souza.
Conforme o documento Gestão Rnest – Uma história que precisa ser contada para não ser repetida (Relator ministro Benjamin Zymler. Brasília: TCU, SeinfraPetróleo, 2021), “desde sua concepção, em 2005, o custo da refinaria aumentou mais de oito vezes, passando de US$ 2,4 bilhões para US$ 20,1 bilhões. O projeto sofreu, ao longo do tempo, diversas ampliações e redesenhos não suportados tecnicamente, antecipações de investimentos e cancelamentos, gerando prejuízos bilionários à Petrobras”.
E ainda: “Inicialmente previsto para estar concluído em 2011, até hoje [2021, data do documento] o empreendimento não foi completamente terminado e opera com menos da metade da capacidade projetada, já tendo sido reconhecidas perdas no balanço no total de R$ 15,463 bilhões”.
Segundo o texto “O TCU e a Lava Jato” (Portal TCU), o Tribunal “apontou os indícios de fraude ainda em 2008. No ano seguinte, recomendou a paralisação das obras da Rnest, em Pernambuco, e da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no Paraná, o que não ocorreu por veto do presidente da República, à época. Esses elementos serviram como pontapé inicial para o início das investigações conduzidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Polícia Federal no bojo da denominada Operação Lava Jato (OLJ)”.
Muito estudo e pioneirismo
Ao iniciar a investigação, André Delgado se deparou com alguns desafios. Além do porte da obra, a Rnest apresentava algumas particularidades. Segundo ele, o Tribunal tinha um procedimento normatizado, um roteiro de auditoria de obra, mas a investigação da Petrobras trouxe novidades. “O Brasil passou muitos anos sem construir uma refinaria e, de repente, veio a política de governo que ampliaria e construiria novas unidades.”
Além desse aspecto, a estatal trazia um procedimento particular. Não usavam como critério a Lei nº 8.666, de 1993, que institui normas para licitações e contratos da administração pública. “Nós nem entrávamos muito nessa discussão, porque a Petrobras tinha um decreto que lidava com o procedimento de contratação separadamente. Ou seja, eles tinham todo um rito diferente e isso gerava dificuldade.”
Tudo era feito mediante convite, o que em geral não cabia em uma obra do tamanho da Rnest. No entanto, a forma como a Petrobras licitava vinha sendo debatida no Supremo Tribunal Federal (STF). “Assim, não discutimos isso, porque não daria fruto.” O jeito foi entrar diretamente no mérito da questão, ver se o preço estava adequado, se a obra estava sendo feita da forma correta.
A refinaria estava bem no começo e o primeiro contrato de obra seria o de terraplenagem, tema de conhecimento dos auditores, tanto sob a ótica da engenharia quanto da busca de preços – apesar de a Petrobras usar metodologia de orçamentação diferente da tradicional, que são o Sistema de Custos Referenciais de Obras (Sicro), do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), e o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi), da Caixa Econômica Federal (CEF).
Ajustadas todas as peculiaridades, a exemplo da segurança da obra, que devia ser acima da média, o que se descobriu ao iniciar a auditoria em relação à terraplenagem foi que havia sobrepreço. “Principalmente, tinha algo que hoje chamam de "jogo de planilha" e isso ficou bem caracterizado”, explica André. O jogo funciona assim: existem dois serviços, um está caro e o outro, barato. A quantidade a ser executada do serviço mais caro é pouca, o que não onera tanto o preço final. E o que está barato é usado em grande quantidade, mas, como está barato, também não impacta tanto o valor final.
Assim, o consórcio vencedor da licitação pelo menor preço mudou os quantitativos durante a execução da obra. O serviço mais barato teve sua quantidade reduzida; e o mais caro, aumentada. “O contrato, que já não era interessante, passou a ser muito ruim para a Petrobras. Na época, a gente até comparou: se as quantidades licitadas fossem aquelas apresentadas depois, a empresa ganhadora cairia para a quarta, quinta posição”, comenta André.
Depoimento na CPI da Petrobrás
O TCU, então, recomendou paralisação e, ao Congresso, a inclusão da obra no quadro de bloqueio, mas, com o veto do presidente da República, a obra prosseguiu. A equipe continuou auditando outros contratos da Petrobras, todos com a mesma dificuldade de referência de preço, até porque alguns itens eram inusitados. O jeito foi analisar as estimativas de custo da própria estatal. Mas tudo era classificado como sigiloso pela Petrobras e até o acesso aos documentos era difícil. “Às vezes, não era nada demais.” Um dos exemplos citados por André é o do chamado “Anexo B”, que nunca conseguiam acessar. Quando conseguiram, o advogado ficava do lado vigiando. “Tudo era muito sensível. Tivemos mais de um acórdão determinando nosso acesso aos documentos.”
Em 2009, estavam na sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Castelo de Areia, anulada posteriormente. O objetivo era investigar supostos crimes financeiros e lavagem de dinheiro, principalmente nas operações do Grupo Camargo Corrêa, uma das empresas do consórcio da Rnest. A operação acirrou ainda mais os ânimos. Para completar, veio a CPI da Petrobras, desencadeada pelo Senado no mesmo ano. Na época, André trabalhava com Rafael Carneiro Di Bello, atualmente secretário extraordinário de Operações Especiais em Infraestrutura (SeinfraOperações), que acompanhou a CPI no lugar de André.
No entanto, o auditor foi convidado a comparecer à comissão, em que foi acompanhado do então secretário de Fiscalização de Obras André Mendes, um dos responsáveis pela auditoria das obras do TRT 2ª Região. Ainda hoje é possível encontrar registros da passagem dos dois pela CPI: “A CPI da Petrobras ouve neste momento André Delgado de Souza, auditor de Finanças e Controle do Tribunal de Contas da União (TCU), e André Luiz Mendes, secretário de Fiscalização de Obras do Tribunal. Eles foram convidados para falar sobre o relatório do TCU que apontou irregularidades na construção da refinaria Abreu e Lima, em Ipojoca, Pernambuco” (Agência Senado).
Nesse dia, André falaria com os integrantes da Pini Serviços de Engenharia, que trabalha com referenciais de custo de obras e havia sido contratada para dar um parecer em relação à obra de terraplenagem, o qual era contrário ao parecer do Tribunal. “Na parte de terraplenagem, que era o foco, nós estávamos muito seguros, porque tínhamos muita documentação, o processo havia sido analisado, reanalisado, tinha acórdão. E o jogo de planilha era muito claro.” Outro ponto é que a Pini também emitira parecer no caso do TRT de São Paulo, o que comprometia as suas informações.
Apesar de todos os desafios, o caso foi um marco, inclusive para a estruturação da Secob, que depois se desdobrou em várias unidades, até chegar às Seinfras (secretarias de Fiscalização de Infraestrutura). Alguns dos processos referentes à refinaria foram: sobrepreço de R$ 673 milhões para R$ 907 milhões (ref. mai. 2009) – Unidades de Coqueamento Retardado (UCR) da Rnest. Acórdão 2.396/2018-Plenário; sobrepreço de R$ 746 milhões para R$ 986 milhões (ref. mai. 2009) – Unidade de Hidrotramento (UHDT) da Rnest; e sobrepreço de R$ 327 milhões para R$ 378 milhões (ref. mai. 2009) – Unidade de Destilação Atmosférica (UDA) da Rnest. Acórdão 2.677/2018-Plenário, todos de relatoria do ministro Benjamim Zymler (Fonte: O TCU e a Lava Jato, Portal TCU).
Outros casos marcantes no contexto do Fiscobras:
Comperj: Sobrepreço de R$ 295,4 milhões para R$ 505,6 milhões (ref. nov. 2011). Central de Desenvolvimento de Plantas de Utilidades (CDPU) do Comperj. Acórdão 2014/2017-Plenário, de relatoria do ministro Bruno Dantas.
Ferrovia Norte-Sul (GO):
Superfaturamento de R$ 46,6 milhões (ref. jul. 2001). Contrato de construção do Lote s/n da FNS (km 0 – km 40). Acórdão 1.822/2020-Plenário.
Superfaturamento de R$ 37,6 milhões (ref. nov. 2004). Remanescente de obra do Lote 2 da FNS (Ouro Verde de Goiás-GO – Jaraguá-GO). Acórdão 2.240/2018-Plenário.
Superfaturamento de R$ 45,1 milhões (ref. nov. 2004). Contrato de construção do Lote 3 da FNS (Jaraguá-GO – Santa Isabel-GO). Acórdão 1.182/2020-Plenário.
Superfaturamento de R$ 65,2 milhões (ref. nov. 2004). Remanescente de obra do Lote 4 da FNS (Santa Isabel/GO – Uruaçu/GO). Acórdão 930/2019-Plenário (Todos de relatoria do ministro Benjamin Zymler. Fonte: O TCU e a Lava Jato, Portal TCU).
Canal do Sertão Alagoano: “Obras dos trechos 4 e 5 apresentaram sobrepreços de R$ 33,9 milhões e R$ 48,3 milhões, respectivamente. Contratos deverão ser repactuados” (Obras do Canal do Sertão Alagoano têm sobrepreço, Portal TCU, 2016).
BR 101 – PE: “TCU verificou irregularidades no projeto de implantação do sistema Bus Rapid Transit (BRT) na BR-101/PE – Contorno de Recife, cujas obras custam aproximadamente R$ 226 milhões” (Contorno de Recife, na BR-101/PE, tem obras fiscalizadas pelo TCU, Portal TCU, 2015).
Aeroporto de Vitória: “Foram encontradas pelo TCU 16 irregularidades graves, como sobrepreço, superfaturamento, inadequação do projeto básico e pagamento de serviços sem cobertura contratual. Segundo o relatório, o valor final da obra aumentou quase R$ 90 milhões devido a alterações substanciais no projeto básico, o que não é permitido pela lei. Dos R$ 337.438.781,17 inicialmente previstos, o total atinge R$ 425 milhões” (TCU suspende obras do aeroporto de Vitória – Portal TCU, 2008).
Angra III: “Foi fiscalizado um montante da ordem de R$ 2,9 bilhões, relativos a dois contratos de montagem eletromecânica da Usina. A auditoria encontrou indícios de fraude à licitação, descompasso entre a execução física e a financeira dos contratos, insuficiência de recursos financeiros para dar continuidade à execução contratual e inviabilidade econômica do empreendimento” (TCU recomenda paralisação de obras de Angra III. Empresas podem ser declaradas inidôneas, Portal TCU, 2016).
Por: Tribunal de Contas da União
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