Combate ao Tráfico de Pessoas: DPU atua na defesa das vítimas e na educação em direitos sobre o crim
Brasília - De hoje (28) até o dia 2 de agosto, instituições governamentais, órgãos internacionais e a sociedade civil integram as atividades da 11ª Semana Nacional de Mobilização para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. A iniciativa global, liderada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), tem como objetivo conscientizar a sociedade sobre o tráfico de pessoas e promover ações de educação em direitos para combater o crime, integrando a campanha Coração Azul.
O Coração Azul, símbolo da luta internacional contra o tráfico humano, representa a tristeza das vítimas do tráfico de pessoas e nos lembra da insensibilidade daqueles que compram e vendem outros seres humanos, crime que fere os princípios básicos dos Direitos Humanos, ratificado por quase todos os países do mundo. Desde 2014, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) coordena as ações e convida instituições parceiras e membros da rede de enfrentamento para focarem seus esforços na conscientização e no fortalecimento do combate ao crime organizado.
A Defensoria Pública da União (DPU) atua em diversas frentes no enfrentamento ao tráfico de pessoas, sendo responsável pela orientação jurídica e pela defesa integral das vítimas, além da proteção de indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade. Para fortalecer essa atuação especializada, a DPU criou o Grupo de Assistência e Proteção às Vítimas de Tráfico de Pessoas (GTTP), um grupo estratégico formado por defensoras e defensores públicos federais que desenvolvem ações em três eixos principais: prevenção; repressão e responsabilização dos autores; e proteção e assistência às vítimas.
Por meio dessa atuação, a DPU promove a educação em direitos sobre o tráfico humano, com foco na disseminação de informações e no fortalecimento do conhecimento sobre o tema. Também orienta e apoia defensoras e defensores públicos na condução de casos concretos que envolvam vítimas de tráfico. Além disso, desenvolve ações de capacitação voltadas à rede de proteção, contribui para a formulação de políticas públicas e articula-se com a sociedade civil, órgãos governamentais e entidades internacionais, com o objetivo de assegurar um atendimento integral e multidisciplinar às vítimas.
O crime
“O tráfico de pessoas não começa em regra com correntes, mas com promessas enganosas que disfarçam a exploração sob a aparência de oportunidade”, afirmou a defensora pública federal Ana Claudia Tirelli, que coordena atualmente o GTTP. “A vítima muitas vezes sonha em estudar no exterior, conquistar liberdade financeira ou construir uma vida ao lado de alguém de outro país. Ela busca, como qualquer pessoa, melhores condições de vida e dignidade, e tem pleno direito de fazê-lo. No entanto, são justamente esses desejos legítimos que as organizações criminosas exploram para enganá-la e submetê-la a situações de tráfico e exploração”, completou.
O crime se caracteriza pela exploração de fatores que tornam as vítimas mais vulneráveis, como pobreza, baixa escolaridade, exclusão social, problemas psicológicos e emocionais, desejo de migrar sem documentação adequada ou sem conhecimento da língua e dos costumes do país de destino, entre outros. Essas vulnerabilidades são agravadas pela precariedade dos serviços públicos no país de origem e pela falta de acesso a políticas públicas capazes de reduzir a exposição das pessoas a esse tipo de violação.
As organizações criminosas que atuam no tráfico de pessoas contam com aliciadores altamente habilidosos, que utilizam estratégias de sedução e persuasão para atrair as vítimas. Eles se apresentam como pessoas influentes, ocupando muitas vezes cargos importantes, como donos de bares, casas de entretenimento, representantes de agências de emprego ou até como pretendentes, futuros namorados ou cônjuges. Eles se inserem no círculo social ou familiar das vítimas, o que confere maior credibilidade às suas ações.
“Após a pandemia a internet se tornou um ambiente ainda mais propício ao tráfico de pessoas, sendo usada tanto para o aliciamento quanto para a prática de diversas formas de exploração das vítimas”, declarou a defensora, que aponta novos desafios para o combate ao crime organizado, ressaltando o aumento crescente no número de vítimas de tráfico internacional especialmente para o sudeste asiático. “As vítimas recebem a proposta de emprego, em euros ou em dólares, já com a oferta de pagamento pelos aliciadores das passagens aéreas. Por ser uma oferta bastante atrativa muitas pessoas são facilmente convencidas e deixam o país em busca de novas oportunidades”.
As propostas utilizadas pelos traficantes são as mais diversas e costumam ser adaptadas ao perfil e à vulnerabilidade das vítimas. Incluem ofertas de emprego em áreas como entretenimento, serviços domésticos ou esportes, além de promessas de casamento, propostas enganosas de tratamento médico e, em casos mais extremos, aliciamento para tráfico de órgãos. Há também o aliciamento de gestantes em situação de vulnerabilidade, com o objetivo de induzi-las a entregar seus filhos para adoção ilegal, geralmente sob a promessa de que as crianças terão uma vida melhor com famílias de maior condição financeira.
“É uma realidade marcada por extrema exploração, em que as vítimas têm seus documentos retidos, são obrigadas a ficar em determinado local sob vigilância e estão sujeitas inclusive a castigos físicos e ameaças psicológicas constantes, caso não cumpram suas metas de trabalho”, comentou Ana Claudia Tirelli, apontando que muitas pessoas atualmente são aliciadas com o objetivo de realização de golpes online para levantamento de quantias de pessoas de diversas nacionalidades, prática conhecida como pig butchering.
Mas como não cair nestes golpes e ciladas? A questão é complexa, pois identificar uma proposta falsa requer muita atenção. A arma mais importante contra o tráfico de pessoas é a informação. “As pessoas precisam buscar informações sobre as agências e empresas envolvidas, investigar cuidadosamente a proposta recebida e estar atentas ao fato de que, em muitos casos, os aliciadores utilizam nomes de empresas reais para dar aparência de legitimidade ao golpe”, completou a defensora.
Exploração na Europa
Foi o que aconteceu com Alana*, uma jovem de pouco mais de 20 anos que, como muitas outras mulheres em situação de vulnerabilidade, decidiu ingressar na prostituição para contribuir com as despesas da família. Durante esse período, conheceu diversas pessoas e participou de várias comunidades e grupos em aplicativos. Foi em um desses grupos que recebeu uma proposta tentadora: mudar-se para a Europa, com promessas de ganhos em euros e uma vida confortável, uma oportunidade única de transformação pessoal e de apoio à família.
A aliciadora custeou um ensaio fotográfico e ofereceu a passagem aérea para a Europa. “O tempo todo ela pedia sigilo. A vítima não deveria contar a ninguém sobre a proposta ou a viagem, que deveria ser uma surpresa. Tudo também aconteceu muito rápido. O sigilo e a celeridade são estratégias dos criminosos, para impedir que a pessoa tenha tempo de refletir sobre os riscos ou que familiares e amigos possam alertá-la”, explicou a defensora Ana Claudia Tirelli.
Ao desembarcar na Europa, Alana* percebeu que a realidade era bem diferente da prometida. Foi levada a um edifício onde também estavam outras jovens de diferentes nacionalidades. Não podia se comunicar com elas, tampouco tinha contato direto com os clientes. Todas as interações eram intermediadas por um terceiro, que se passava por ela e organizava os encontros. A última surpresa: Alana* foi informada de que deveria pagar aos exploradores todos os custos de sua viagem. A dívida apresentada foi de 15 mil euros.
A jornada de trabalho começava às 9h da manhã e se estendia até as 2h do dia seguinte. O único valor que recebia era o suficiente para custear uma refeição diária — que também era adicionado à dívida. Para dificultar a atuação das autoridades, a organização criminosa transferia as jovens com frequência, inclusive entre cidades diferentes. “O objetivo era impedir que elas criassem laços, redes de apoio ou qualquer vínculo com clientes ou pessoas locais, o que dificultaria ainda mais o trabalho das autoridades”, destacou a defensora.
Alana* conseguiu escapar graças a um descuido da pessoa que a vigiava. Conseguiu despistar os criminosos e fez contato com o consulado brasileiro, que prestou o apoio inicial e providenciou seu retorno ao país. No entanto, os problemas continuaram. Alana* passou a receber ameaças dos criminosos, que sabiam onde ela vivia e tinham informações sobre sua família. O medo de represálias por parte da organização a acompanhou por muito tempo.
A DPU atuou no caso, providenciando o acolhimento necessário à jovem em articulação com a rede local de assistência e proteção às vítimas de tráfico de pessoas.
Trabalho Doméstico
Quem de nós não conhece ou já ouviu relatos de jovens, ainda crianças, que saem de cidades distantes para trabalhar em residências de famílias abastadas ou em ambientes que aparentam oferecer melhores oportunidades para seu desenvolvimento. Essas crianças são supostamente “adotadas” por essas famílias, que prometem cuidar delas e oferecer educação. No entanto, na realidade, muitas acabam submetidas a condições análogas à escravidão, trabalhando como serviçais ou trabalhadores domésticos, sem acesso à educação, sem liberdade e impedidas de construir sua própria trajetória de vida e família.
Situações como essas são comuns e a DPU já atuou no resgate de diversas mulheres e homens nessa situação, que têm suas vidas roubadas ao longo de anos de servidão. “É uma vítima que não tem autonomia. Ao ser retirada do ambiente de exploração, muitas vezes não se consegue sequer identificar a família de origem, ela não tem para onde voltar, não tem rede de apoio ou suporte. Por isso, o acompanhamento necessário deve ser de médio e longo prazo, podendo demandar até mesmo assistência permanente do Estado para garantir uma vida com condições mínimas de dignidade”, comentou a defensora Ana Claudia Tirelli.
O trabalho das autoridades consiste em identificar a dinâmica da exploração e as vítimas do tráfico humano, localizar os responsáveis e puni-los, além de assegurar toda a assistência necessária para que essas pessoas possam reconstruir suas vidas com dignidade. O resgate das vítimas passa pelo acolhimento, análise de riscos à segurança e suas necessidades urgentes, como alimentação, abrigo e cuidados médicos. Mas após o resgate, outros problemas e necessidades surgem, e o primeiro cuidado é apenas a ponta de um processo longo de recuperação e reparação.
“Recentemente, visitei uma vítima de trabalho análogo à escravidão doméstico, cerca de três anos após o resgate. Constatei que ela está bem em diversos aspectos: por intermédio da DPU, recebeu uma casa como parte do acordo com a família que a explorava, além de um valor indenizatório mensal durante cinco anos. Voltou a estudar e conta com o apoio da assistência social local. No entanto, ela ainda apresenta diversos traumas, como a sensação de que está sendo vigiada e perseguida pela família que a explorou”, comentou a defensora.
A mulher, agora idosa, ainda apresenta diversos impactos profundos das décadas de exploração. “Apesar de ter quase 50 anos de idade, ela apresenta comportamentos, desejos e referências emocionais bastante infantis. Por exemplo, seu caderno escolar traz desenhos que lembram o traço e a temática de uma criança de 7 ou 8 anos. Ela conta, com entusiasmo, que uma das coisas que mais gosta de fazer é confeccionar bonecas de tecido e revela que seu maior sonho é casar e ter filhos. E como lidar com isso? Como resgatar todo um processo de desenvolvimento e amadurecimento que lhe foi negado ao longo de tantos anos? Como devolver a ela o tempo perdido?”, questionou Tirelli.
O atendimento às vítimas após o resgate exige um trabalho individualizado, capaz de responder às diferentes demandas que surgem em cada caso. A regularização de documentos e o acesso a serviços que garantam condições mínimas de dignidade são fundamentais. Isso inclui o acesso ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), ao Sistema Único de Saúde (SUS), a regularização migratória para as vítimas não nacionais, além de oportunidades de capacitação profissional. Essas medidas são essenciais não apenas para a reconstrução da vida das vítimas, mas também para evitar a revitimização, um risco frequente em casos de tráfico de pessoas.
As vítimas de tráfico de pessoas também têm o direito de não ser criminalizadas por eventuais atos ilegais que tenham cometido em decorrência da situação de exploração a que foram submetidas. Além disso, têm prioridade no atendimento e na tramitação de seus processos administrativos e judiciais. A Defensoria Pública da União pode atuar em diferentes esferas – cível, trabalhista, penal e internacional – para a defesa dos interesses dessas vítimas, assegurando o reconhecimento de seus direitos, o acesso a indenizações, verbas rescisórias e outras reparações, bem como atuando como assistente de acusação no processo criminal visando à responsabilização e punição dos autores do crime.
DPU em Números
Em 2004, o Brasil ratificou o Protocolo de Palermo por meio do Decreto n° 5.017/2004. Esse protocolo é um marco fundamental no combate ao tráfico de pessoas, com um conjunto de regras e mecanismos de prevenção, repressão e punição ao crime, além da proteção às vítimas e mecanismos de cooperação internacional. A Lei n° 13.344/2016 dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas.
Dados recentes demonstraram que, de 2017 a 2024, a DPU atuou no atendimento de 1.238 vítimas de tráfico de pessoas. Os dados são de relatório enviado ao MJSP, para a construção de um Painel sobre o tema. Os dados da DPU colocam o tráfico de pessoas com a finalidade de submeter as vítimas a trabalho em condições análogas à de escravo como primeiro da lista.
As vítimas são em sua maioria homens, representando 86% dos resgatados, com maior incidência de tráfico no ambiente interno, em especial em zonas rurais e estabelecimentos com estruturas precárias. Para a exploração sexual, a maioria são de mulheres e pessoas trans, que correspondem a 75% do público resgatado, com a maioria das pessoas sendo alvo de tráfico internacional.
* Os nomes utilizados nesta matéria são fictícios para resguardar a identidade das vítimas.
DCC / ACAG
Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União
Por: Defensoria Pública da União
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